Valéria Regina Neves é figura histórica que merece ter sua história registrada para ser exemplo de luta, persistência e vitória. Mulher, preta, pobre e periférica que fez diferença na implementação de políticas públicas que impactam positivamente mães e crianças da capital mineira. Desde a juventude e ainda é militante das lutas contra racismo, pedofilia, machismo e intolerância religiosa. Foi agente de saúde- estagiária da extinta Legião Brasileira de Assistência LBA,  subgerente da Coordenadoria de Promoção de Igualdade Racial da Prefeitura de Belo Horizonte de 20 novembro de 2008 a 30 dezembro de 2013, também, atuou  nos Conselhos Tutelares de Belo Horizonte – como suplente. Participou ativamente da luta para a criação do Estatuto da Infância e Juventude, via movimentos sociais da infância e juventude.

Nascida em Belo Horizonte em 20 de fevereiro de 1961, Valéria é filha de Maria Madalena Neves e José Valério Neves. Quando ela nasceu sua família morava no bairro Gutierrez, mas assim que seu pai morreu, todos foram morar na casa de sua avó materna no bairro Amazonas e depois quando sua avó faleceu, sua família se mudou para o bairro Pindorama. Nessa época, ela tinha nove anos.

Quando criança, Valéria teve uma doença chamada reumatismo e não pode andar por muito tempo, por isso entrou na Escola com 11 anos e só completou a oitava série do Ensino Fundamental aos 18 anos.  Nessa época, ela começou a trabalhar como cuidadora de uma senhora, pois era preciso contribuir economicamente para a família, por isso parou de estudar e não pode concluir o Ensino Médio imediatamente.

Além de enfrentar o racismo, ela sobreviveu também ao machismo e a violência de gênero. Valéria foi vítima de tentativa de feminicídio, em 1999, quando seu marido lhe deu três facadas nas costas, só não morreu porque foi socorrida por sua filha de 12 anos. Ali ela percebeu que não tinha outra saída, ou se divorciava dele, ou iria morrer. Mas assim que ela se divorciou dele, ele parou de dar assistência aos filhos. Para criá-los, ela contou com o apoio da mãe e da tia.

Hoje com 63 anos, é mãe de três filhos, avó de coração de uma neta de 18, e de uma bisneta de sete meses. Tem ainda um neto biológico de nove anos. Atualmente, se sente realizada como pessoa e como mãe. “Fui mãe e pai e tive com ajuda incondicional de minha mãe e minha tia materna Efigênia (d. Sinhá), minha luta foi por vida com qualidade de saúde, estudos e caráter para meus filhos e minha filha, meu maior medo era morrer e deixar meus filhos pequenos e eles se perderem no mundo. Hoje me sinto muito realizada de ver meus filhos adultos e encaminhados na vida – pessoas de bem para eles/ela e o mundo. Me sinto vencedora na minha maior missão – ser mãe “, afirma.  

Para ela, a mãe solo é apenas uma imposição do abandono da paternidade irresponsável, e a Justiça, composta por pessoas machistas, fascistas e misóginas mantém essa irresponsabilidade.  “Nós somos vítimas de um processo de omissão do judiciário em termos de paternidade irresponsável, que é endossada por religiões, e por omissão política.  “Mesmo nessa situação criamos nossos filhos, filhas e conseguimos dar um norte para eles/elas. Ainda assim, a sociedade nos rotula e incrimina, pior de forma conivente se omite, levando para esta definição de “mãe solo” que é confortável para toda sociedade mas de forma romantizada é na verdade perversa para nós mães nestas condições dentro desse processo”, explica.

Trabalho – Seu primeiro curso de formação foi Datilografia. Na época era exigido que um datilógrafo competente desse 180 toques por minuto, ela fazia 220 neste mesmo tempo.  Em seguida conseguiu um emprego no Conselho Central da Sociedade São Vicente de Paulo. Seu trabalho era datilografar os carnês de doadores, além de receber as doações. Ficou cerca de cinco anos neste local. Depois disso trabalhou na Fundação Mendes Pimentel e no posto da extinta Legião Brasileira de Assistência (LBA) do bairro Pindorama.  “Eu entregava a cesta de alimentos e as farinhas para a mãe que estava amamentando e fazia palestras sobre aleitamento materno, o cuidado do corpo no puerpério e a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, além de outros”, diz.

Participou de palestras da Pastoral da Criança e fazia cursos promovidos pela Zilda Arns Neumann e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) – quando da candidatura para eleição do primeiro conselho tutelar de Belo Horizonte em 1993.

Em 1993, compôs uma chapa para o Conselho Tutelar, mas ficou como suplente. Para cumprir essa tarefa, participou da formação do professor Edson Sêda, que é um representante de um braço da Unicef Infância. “Nós fomos o único grupo de conselheiras titulares e suplentes que passou por essa formação da Unicef, dentro do Conselho Nacional da Infância e Juventude, (Conanda). Depois disso, não teve notícias que em outras eleições conselheiro ou conselheira no país teve essa formação. Por meio dela que aprendi profundamente sobre gestão de política pública na assistência social para a infância e juventude”, esclarece.

A luta por BH – Em 2008, Valéria assume a subgerência da Coordenadoria de Promoção de Igualdade Racial da Prefeitura (CPIR) -, sendo a Coordenadora Graça Sabóia, e atua na discussão intersetorial da capilaridade do Estatuto da Política de Igualdade Racial Nacional para Belo Horizonte numa sequência que começou em 1998 com a então secretária Diva Moreira.  Permaneceu neste trabalho até o final de 2013.  “Trabalhei com o grupo que tinha a missão de transformar este espaço com orçamento e estrutura de recurso humano, principalmente técnico, e também de recurso dentro do orçamento do município”. Como um dos resultados desta gestão foi a instalação na Câmara Municipal de Belo Horizonte da Frente Parlamentar de Igualdade Racial em 2009 foi lançado o Plano Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Belo Horizonte que serviu de referência para outros municípios Brasil afora.”, orgulha-se.

Também neste período de 2008 até 2013, terminou o Ensino Médio e fez faculdade em Recursos Humanos.  Como foi sempre uma pessoa à frente do seu tempo, ela utilizou as técnicas de Recursos Humanos para a construção de políticas públicas.  Em 2010, por meio de seu trabalho foi criado uma lei que trata do Plano Municipal de Promoção de Igualdade Racial e em 2011, foi criado o Conselho de Promoção de Igualdade Racial.

Mas ainda na CPIR há três projetos que ela se orgulha de ter ajudado a sistematizar, que são os diálogos sociais com os povos negros, indígenas e ciganos.  Em 2010, ela organizou um grande diálogo, com os povos indígenas no mês de abril, com os povos negros em 13 de maio, com os povos ciganos no dia de Santa Sara de Kali, 24 de maio. Nesses momentos era formado um Fórum Intersetorial da discussão da política no município, inclusive com as regionais.  “A minha tarefa era acompanhar esses fóruns e realizar via a CPIR um diálogo com os governos estadual e federal para que uma política ampla fosse criada”, comenta.

Em 2014, ela assumiu como suplente do Conselho Tutelar da Regional Noroeste e ficou até o final de 2014, intercalando com outros Conselhos Tutelares de Belo Horizonte, e cobriu férias em outras regionais de Belo Horizonte, por isso conheceu bem a realidade dos problemas que esse público enfrenta.

Em 2015 a meados de 2018, assumiu como assessora da Diretoria de Recursos Humanos da Rede Fhemig, com ênfase na Humanização no SUS onde a Ouvidoria em Saúde e a questão de preparação para aposentadoria servidoras e servidores da Rede Fhemig eram suas pautas de acompanhamento.

A luta continua  – Como cidadã, uma vez que não é gestora desde 2018, ela avalia que houve uma quebra nas políticas públicas de forma geral. A entrada do governo federal mais conservador e sem maior foco na assistência social como propulsora da melhoria da qualidade de vida e promoção da equidade. Lembrando que houve também um crescimento de religiões que demonizam as religiões de matriz africana e também demonizam a política social contra o racismo e a homofobia.

Mesmo fora das atividades institucionais, Valéria Regina continua o trabalho pela melhoria do local onde mora. Atualmente, ela luta pela continuidade da Escola Estadual Doutor Lucas Monteiro Machado, que foi um conquista de mulheres no início dos anos 1982 para levar o Ensino Médio para o bairro/território. Essa unidade de ensino oferece as modalidades de Ensino Médio, técnico e Educação para Jovens e Adultos (EJA). Mas está em vias de ter suas atividades encerradas pelo governo de Romeu Zema (Novo). Desde outubro do ano passado não foi aberto o sistema de novas matrículas para que os jovens façam o Ensino Médio. Tendo a previsão do término das atividades escolares no Lucas para dezembro de 2025. Diante desse grave crime de direitos humanos que é a Educação, foi constituída comissão SOS Lucas em novembro de 2023 em defesa desta escola.

Ela defende uma educação de qualidade dentro do território para que as crianças estudem. “A negligência de vários e várias ao longo dos anos que foram eleitos(as) para o Legislativo pelo bairro está permitindo que esse fato aconteça. Esse é o meu pavor, a inércia do Legislativo e da sociedade que não se atém a esse crime de Direitos Humanos que está sendo cometido. Dão migalhas, fazem uma audiência, um requerimento aqui, um acolá. Mas efetivamente nada de ações concretas. Eu tenho vontade de pegar um colchão e fazer uma ocupação na escola, lógico, sem atrapalhar os alunos(as) que ainda estudam lá. A maioria deles são filhos, filhas de mulheres negras que estão lutando para dar vida de qualidade para seus filhos/as”, declara.   

Ela integra uma comissão para que essa Escola não feche. “Não vamos permitir que esse desgoverno continue a sucatear a Educação, vamos lutar pelo nosso direito de equidade, para mudar a vida da nossa comunidade pela Educação.  Assim como os meus filhos fizeram o Ensino Médio nessa escola, temos no bairro outros jovens que precisam estudar nessa escola também. Mas queremos uma escola de qualidade, porque hoje essa unidade está destruída, sucateada”, enfatiza.  Valéria também pleiteia que uma unidade do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) seja instalada na parte baixa do bairro. “Entendo que ele está num local apropriado, contudo as pessoas mais velhas têm dificuldade de acessar a parte alta para conseguir esses serviços, como também um espaço cultural”, diz.

 Amor pelo lugar onde mora – “Pindorama é minha África, é o meu país, é o meu Brasil, o meu mundo”. É assim que Valéria responde quando é perguntada sobre o que sente pelo local onde mora. Chegou no bairro com nove anos e passou toda sua vida naquele local. Nessa época, o antigo aterro sanitário era uma imensa área verde.  Era o local preferido das crianças para soltar pipa, jogar futebol e brincar de carrinhos de rolimã.  “Eu brinquei muito neste lugar fazenda que tinha árvores grandes que fazíamos gangorras para brincar.  Havia uma fazenda onde a gente comprava leite. O local onde hoje abriga o aterro sanitário que está desativado, que era o nosso parque no domingo à tarde, lugar de brincar na lagoa, a água era tão limpa que a gente podia até nadar, tinha peixinhos que a gente engolia para aprender a nadar”, descreve.

Ela conta que a fauna e flora eram riquíssimas, com nascentes. Sua mãe lavava roupa para uma família que morava no bairro Ipanema. Ela tinha a missão de buscar e levar a roupa e passava pelo local onde é o aterro desativado para chegar ao seu destino. “O local era lindo com pássaros, cigarras, gafanhotos, borboletas. Não existe hoje em BH um parque mais bonito do que era esse local”, detalha.  

De repente, chega a usina de lixo. Antes não tinha o nome de Aterro Sanitário. A qualquer hora do dia e da noite, os caminhões passavam cheios de lixo e antes de virar no local, um pouco dele caía sobre as ruas. Com o lixo, vieram também moscas, mosquitos, urubus, morcegos, escorpiões, cobras, ratos e outros bichos. “Eles foram entupindo as nossas nascentes, onde a gente pegava os peixinhos virou chorume, o mal cheiro era insuportável e depois virou esgoto a céu aberto e se esqueceram de nós, nos tornamos a periferia da periferia, eles entenderam que a gente era parte do lixo. O valor do nosso terreno foi se desvalorizando, a gente não conseguia mais vender, o jeito era ficar aqui mesmo – no lixão como vizinho.”, complementa.  

Com o lixão em um lugar pobre, mães com muitos filhos/filhas, a pouca alimentação e até mesmo a fome para algumas famílias transformou em um lugar onde ninguém queria vir. “Ficamos isolados de tudo, e por fim, começamos a ir pra lá, pra pegar o que poderia complementar a alimentação. Então a gente trazia iogurte vencido, carne, roupas muitas vezes a gente comia e passava mal e pior os caminhões traziam lixo tudo misturado e isso virou local de cata-cata para muitas famílias se alimentarem e vender alimentos por vezes vencidos, este cata-cata causava acidentes de cortes em pés, mãos, desidratação, pois era um tempo em que não se falava e tratava da questão do lixo como hoje, mesmo que ainda precisamos melhorar muitos nesta questão mas era um lixão. Muita gente cortou o pé, teve gente que ficou deficiente devido a esses cortes. A nossa situação de exclusão elegeu muita gente, inclusive pessoas progressistas e de esquerda que depois nos abandonaram. Ninguém se importava conosco,” conclui.

 A mudança só começou quando o mal cheiro chegou aos bairros de pessoas mais abastadas, como o Padre Eustáquio. “Hoje, a comunidade pleiteia que essa área se torne um parque ecológico, com academia da cidade, pista de cooper e bicicleta, um pipódromo, que é que tem uma tradição do local para brincar com segurança, horta comunitária, para melhorar a alimentação, melhorar a fauna e a flora, projeto de reciclagem. Eu não sou candidata mas se um dia eu for será para transformar esta área que tem potencial de ser um lugar de promover saúde, horta, cultura e lazer, não só para o meu Pindorama, mas para todos os bairros de seu entorno.”, finaliza.