Edneia Aparecida de Souza é uma mulher pobre e periférica, que viu sua mãe viúva sofrer por não conseguir oferecer moradia de qualidade para os filhos e sentiu a agonia de ter que morar e viver em condições precárias, mas transformou sua dor em luta pelo próximo. Os feitos dessa mulher vão desde lutar para melhorar as condições de moradia das pessoas, passando por trabalhar exaustivamente para emancipação, empoderamento, qualidade de vida e preservação das vida das mulheres e suas famílias, além de atuar também pelos direitos básicos de sobrevivência, como água, luz, asfalto, ônibus, escola, creche, emprego e contra a discriminação, que dificulta as pessoas que moram na periferia a conseguir boas vagas de emprego.
Edneia Aparecida de Souza nasceu em 1 de novembro de 1963, na época sua família morava na Vila Americana, local onde hoje é o Bairro União, na região Nordeste de Belo Horizonte. Filha de Maria da Paz de Souza, que é oriunda da área rural de Araçuaí, chamada Engenheiro Chinó, no Norte de Minas, e de Vicente Rodrigues de Souza, já falecido, que era natural da capital mineira. Tem oito irmãos vivos Edna, Edilson, Edgar, Henrique, Wanderson, Heloisa, Elton, além de Edson que morreu em 2010. Atualmente Edneia é mãe solo de quatro filhos Ivan e Bruno que são guardas municipais, Bárbara que é enfermeira e Breno, que é eletricista e montador de móveis.
Infância – Com pais muito cuidadosos e amorosos, Edneia teve uma infância muito feliz. “Éramos muito pobres e trabalhávamos muito, mas a vida era diferente”, diz. Ela se recorda que sua casa ficava perto de uma grande área verde, onde a família colhia frutas e buscava lenha, pois eles ainda não tinham fogão a gás. Além disso, todo domingo a família, juntamente com várias outras, fazia piquenique nessa área verde.
Seu pai, Vicente Rodrigues de Souza, trabalhava como bombeiro hidráulico. Sua mãe lavava roupa de outras famílias e fazia isso num pequeno riacho que ficava onde hoje está localizado o Minas Shopping, no bairro Cidade Nova. “Me lembro que eu, meus irmãos e minha mãe, passávamos o dia nadando desse riacho, onde a gente também pescava piabas”, recorda. Outra coisa que Edneia não esquece é do Cinema no bairro Ipiranga que se chamava Forninho. E eles iam quase todo final de semana assistir filmes.
Estudo – Edneia fez a primeira série do Ensino Fundamental na Escola Estadual Laudiene Vaz de Melo e em outras escolas que ficavam localizadas na antiga Vila Americana, próximo a sua casa. Eram escolas instaladas em condições precárias e uma delas caiu e os alunos tiveram que ir para outro espaço. Era uma época em que a família tinha poucas condições financeiras. Passava muita falta de tudo. Ela não tinha o uniforme, usavam o velho ganhado de alguém, não tinha pasta e o material era escasso. “Era o que meus pais davam conta de comprar”, diz.
Sempre chegava na escola cansada e suada, pois tinha que ir a pé e andava muito, pois morava onde hoje é o Minas Shopping e a Escola ficava onde atualmente é a Estação Silviano Brandão do BHBUS. Sofria bullying de outros alunos quase todos os dias, e ninguém fazia nada, pois naquela época esse ato era considerado normal. Estudou apenas até a quarta-série do Ensino Fundamental. Naquela época existiam poucas escolas públicas de quinta a oitava séries e do Ensino Médio, a maioria das pessoas continuava os estudos em escolas particulares.
Edneia não fez o Ensino Médio e nem o Superior, mas tem a honra de ver os seus fazendo. A filha Bárbara, por exemplo, está fazendo o curso de Enfermagem Superior. Sua neta mais velha, Maria Júlia de Souza, filha de Bruno, passou em segundo lugar na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e estuda Geografia. “Minha pretinha está na federal, estudou a vida inteira na escola pública. Estou muito orgulhosa”, diz.
Edneia herdou o histórico de saúde do pai. Faz tratamento de reumatologia, artrite e reumatoide, e diabetes. Teve três infartos, um em 2010 e outro em 2013. No ano passado, teve outras complicações como embolia pulmonar e trombose. Ficou uma semana entubada e dois meses no (CTI) Centro de Terapia Intensiva.
Perda do pai – O pai de Edneia era muito doente, tinha sérios problemas cardiológicos e uma de suas memórias mais vivas é da família atravessando a mata da antiga Vila Americana andando até o Bairro São Paulo para chegar no Hospital Nossa Senhora Aparecida para visitá-lo, onde ele sempre ficava hospitalizado. Houve períodos em que ele ficava internado no Hospital Socor e as crianças não o visitavam porque era no Centro e eles não tinham dinheiro para arcar com o transporte de todos.
A família levava uma vida simples, contudo muito feliz, até a morte de seu pai, no ano 1977, quando Edneia tinha apenas 13 anos e sete irmãos mais novos que ela. Até então, a menina morava na mesma casa desde quando nasceu e acreditava que aquela casa era da família. “Eu era muito inocente, não entendia a diferença de imóvel comprado e alugado. Nem sabia que meus pais pagavam aluguel”, diz.
O pai não trabalhava de carteira assinada, sua mãe demorou muito para receber o acerto dele, e para piorar os vizinhos disseram para proprietária da casa que a família teria direito ao usucapião pelo tempo que eles moravam ali. A partir de então, a família sofreu muita pressão para deixar essa casa. Em função de todos os problemas, a família mudou para outro local e ficou em condições precárias, com muitas pessoas e pouco espaço. Desde então, eles passaram por uma história de lutas e humilhações por moradia, que marcou muito a vida de Edneia. Moraram em muitos locais insalubres e caros.
Sua mãe conseguiu uma vaga para trabalhar como varredora de rua. “Ela foi uma das primeiras varredoras de rua no Centro de Belo Horizonte”, afirma. Contudo, com o salário que recebia, ela não conseguia pagar o aluguel e as contas da casa.
Sem ainda ter superado a perda do pai, Edneia teve que virar adulta ainda na pré-adolescência. Para ajudar a pagar as despesas da família, ela e sua irmã tiveram que começar a trabalhar. Edneia foi trabalhar como doméstica. Passava a semana inteira no trabalho e somente no final de semana que conseguia ter folgas em casa. Somente aos 18 anos parou de trabalhar em casa de família e foi trabalhar no comércio.
Moradia – A luta por moradia sempre esteve presente na vida de Edneia. Sempre morou de aluguel em casas desconfortáveis. Na década de 1980, morou num barracão que mais parecia um cortiço. Foi nessa época que ela ficou sabendo que existia uma Associação que atuava no movimento de luta pela moradia. Na primeira reunião em que compareceu, ela aprendeu que morar dignamente era direito garantido na Constituição. E nesse mesmo dia ela se ofereceu para ajudar, pois percebeu que existiam muitas pessoas com o mesmo problemas e que ela deveria fortalecer essa luta. Se tornou secretária da Associação, organizava a agenda do movimento e cuidava de um cadastro de pessoas que precisavam de moradia, onde havia mais de oito mil inscritos.
Não faltava às reuniões que eram realizadas todas às quartas-feiras na rua General Osório, no Alto Vera Cruz e uma vez por mês, participava de reuniões com a Prefeitura e o Governo do Estado para cobrar soluções para o problema. Em 1985, juntamente com um grupo de pessoas, sua mãe conquistou uma área no bairro Taquaril e é neste local que ela mora até hoje, com sua família. “Consegui minha casa através do movimento de luta pela moradia e estou nela até hoje com muito orgulho”, diz.
Apesar da felicidade de ter uma moradia própria, era muito difícil viver naquele local. No período chuvoso, aconteciam vários deslizamentos de encostas com mortes, muitas delas nem chegavam a ser noticiadas na imprensa e ficavam invisíveis aos olhos da população. Edneia mobilizou a comunidade e juntos criaram a Rádio Taquaril para fazer enfrentamento aos problemas locais. Melhorou a comunicação, informavam os perigos, pediam que as pessoas saíssem antes dos acidentes e, quando acontecesse o pior, informava as condições dos atingidos e o que eles precisavam. Contudo, a Polícia Federal e (Anatel) Agência Nacional de Telecomunicações fecharam essa Rádio em 2008. “Entramos na Justiça e ganhamos. Em 2017, a Câmara e o Senado Federal aprovaram o seu funcionamento e estamos esperando o documento de autorização para religar os aparelhos e colocar a Rádio em funcionamento”, explica.
Luta pelo próximo – Mas ela não parou por aí, transformou sua dor em luta, tinha conseguido a sua casa, mas via que muitas outras pessoas ainda moravam em condições precárias. Nessas 40 anos, não lutou apenas por moradia mas também pelos direitos básicos de sobrevivência, como água, luz, asfalto, ônibus, escola, creche, emprego, contra a discriminação, que dificulta as pessoas que moram na periferia a conseguir boas vagas de emprego.
Juntou algumas pessoas da cidade que não tinham onde morar e criaram uma cooperativa, em 1999, e juntos compararam uma grande gleba de terra no bairro Jardim Vitória. Pagaram em diversas parcelas e fizeram diversas melhorias no local. Em 2007, conseguiram urbanizar uma parte, entregaram 206 lotes urbanizados. Ainda sobraram duas partes dessa gleba. Em 2010, a Associação fez uma parceria com PBH, Caixa Econômica Federal e Ministério das Cidades e Emcamp para construção de um empreendimento do Minha Casa, Minha Vida e foram construídos 1.950 apartamentos no local. A negociação previa que as famílias da Cooperativa tivessem prioridade no recebimento de apartamentos, porém a Prefeitura não cumpriu o combinado. Foi necessário travar uma batalha para conseguir garantir o direito dos cooperados que eram donos dessa terra.
Edneia atua ainda na luta de Enfretamento de violência contra as mulheres. “Mulheres, negras, periféricas, sem marido, com crianças, sem emprego, sem casa e pagando aluguel passam dificuldade exatamente como minha mãe passou nos anos 90, por isso que eu fiz dessa luta a minha vida e vesti essa camisa”, completa.
Trabalha exaustivamente para emancipação, empoderamento, qualidade de vida e preservação das vida das mulheres e suas famílias. Junto com outras mulheres sugeriu o Projeto de Lei Morada Segura, durante o curso de defensoras populares. Esse projeto, que garante um aluguel social para mulheres que estão sofrendo violência a fim de que elas consigam sair de suas casas, foi apresentado na Câmara Municipal, pela então vereadora Áurea Carolina.
Também atua para que mulheres que já têm apartamento pelo Minha Casa Minha vida não percam seu imóvel, caso o abandone devido à violência doméstica. “A mulher está numa moradia dessa e quem sofre uma violência doméstica tem que escolher entre a casa ou o caixão. Se ela ficar na casa ela vai morrer, se sai da casa, ela perde a casa. Aí ela tem que escolher ou fica com a casa sabendo que vai morrer, ou sair sabendo que vai perder a casa e nunca mais na vida poderá participar desse programa. Lutamos para rever essa regra que penaliza as mulheres. Eles precisam nos ouvir para construir as leis. Sejam de fato para atender a nossa necessidade,”, explica.
Atualmente atua para que a Câmara Municipal de Belo Horizonte aprove Projeto de Lei 047/2019, que permitirá a criação de corredores culturais e econômicos, artísticos nos espaços públicos das próprias comunidades. “Na prática, poderemos organizar feiras e atividades culturais próximas de nossas casas”, finaliza.