Ivone Maria de Souza Diniz, de 67 anos, mulher forte, mãezona, politizada e consciente do seu papel na sociedade. Sempre enfrentou o racismo de frente. Professora aposentada e artesã, que não para. Participa de feiras e eventos diversos. Dançarina do estilo Afro, que foi aluna de Marlene Silva, lutou para a implantação do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR) em Pedro Leopoldo e se orgulha de ser a atual presidenta. Pertence ao Coletivo, PL/afro. Apesar de sua trajetória de lutas e conquistas, é humilde e afirma que ainda está aprendendo todos os dias ainda o que é viver.


 Filha de Maria Luíza Moreira de Souza, uma dona de casa que também lavava roupas de outras famílias para ajudar no sustento da casa e Ataíde de Souza, um trabalhador afastado pelo INSS, devido a pressão alta, que aproveitava os terrenos vagos no bairro e como meeiro, plantava milho, chuchu, quiabo,abóbora, couve, feijão e outras para ajudar a enriquecer a alimentação da família. Ivone nasceu em um barracão no canteiro de obras na fábrica de cimento, onde seu pai trabalhava, em Pedro Leopoldo, Minas Gerais, dia 3 de novembro de 1957. Era domingo e neste dia o sol estava muito quente e para piorar o telhado do local era de zinco. Sua mãe contava que pediu muito a Deus para que ela não nascesse no dia anterior, porque era dia de finados.

Ela teve cinco irmãos, Antônio Clarete e Maria Helena, que já morreram.  Além deles, há também Suzana nascida em 1959,estudou Letras e Pedagogia na Fumec e se aposentou como Supervisora Escolar, Marisa Aparecida, que nasceu em 1960 e que que mora na França e que no Brasil foi professora, tradutora intérprete por muitos anos; e Mônica, nascida em 1963, que mora na Suécia e também foi Professora e hoje já está aposentada.Ela conta que teve uma infância maravilhosa e com pais maravilhosos. Seu pai era um homem amoroso com os filhos e a família e sua mãe, uma mulher positiva que colocava todos sempre para cima. “Éramos crianças tão bem cuidadas e amadas, que minha avó materna dizia que meus pais mimaram demais os filhos e meu pai respondia,que eles tinham que minar sim porque o mundo não ia fazer isso.  Minha família era muito pobre, mas a nossa riqueza era essa”, lembra.

CÉU – Ela se recorda que seu pai era um contador nato de histórias e, ainda, se lembra de muitas histórias que ele contava, especialmente, uma que ele descrevia o azul do céu. “Até hoje eu lembro dele fazendo essa descrição.  Um céu com muita estrela e muito azul. Sempre olhei para o Céu e nunca vi o céu que eu imaginava quando ele ia falando”, detalha.  Esses momentos de escutar histórias,influenciou ela e suas irmãs, que se tornaram boas alunas de redação, tanto que anos mais tarde, se formaram em Letras. 

Seu pai faleceu de infarto em uma noite gelada de Julho de 1974. “Acordamos com ele sentindo dores no estômago que na verdade era o infarto fulminante”, conta. Sua mãe também já fez a grande viagem. “Era uma mulher forte que junto a meu pai nos ensinou desde sempre o que era racismo e nos fortalecia ao nos dizer que éramos lindos e que se alguém tinha que ter vergonha era quem escravizou o nosso povo. Foi embora aos 79 anos e era conhecida por nunca perder o humor diante das vida”, explica.

BRINCADEIRAS- Ela se rememora com muito carinho das brincadeiras que fazia na infância e como seu pai ajudava a construir os brinquedos. “A gente tinha casinha de boneca, cercada com tijolo, meu pai era caprichoso, construiu um fogãozinho para a gente fazer guisado. Ele também ajudava a fazer os guisados, e as meninas que moravam na vizinhança vinham brincar conosco”, relembra. Outro fato da infância que Ivone não esquece foi quando ela era criança precisou fazer uma cirurgia de hérnia, no Hospital Vera Cruz, em Belo Horizonte, e ficou hospedada na casa onde sua tia trabalhava, que era a casa de um juiz. A filha desse juiz lhe deu uma boneca e um ferrinho de passar, que ela guarda com carinho até hoje.

 Também não esquece quando ia com sua irmã iam buscar leite no Lactário da Maternidade de Pedro Leopoldo, que doava leite para crianças carentes.

ESCOLA/ESTUDOS- Ivone Maria de Souza Diniz não frequentou o jardim de infância. Foi à aula somente umas duas vezes, porque quando estava lá sentia muita saudade de sua mãe e chorava muito. “Eu achava que se eu demorasse muito na Escola, quando eu voltasse não encontraria minha mãe em casa”, conta. Sempre na hora de sair para aula, ela dizia, “No sábado eu vou”. Todos riam, porque no sábado não tinha aula.Cursou a primeira séria na Escola Estadual Dona Maria Lucia Carvalho Lopes, que ficava próximo a sua casa. Entrou lá com sete anos, em 1964. “Fui muito chique para a Escola”.  O uniforme era saia plissada azul marinho e blusa social branca.Seu pai lhe deu uma pasta que cabia os cadernos. Não existia cadernos grandes,eram todos pequenos. A sala tinha aquelas carteiras, que o aluno sentava em dupla.  As meninas sentavam de um lado e as meninas do outro, sem misturar. Ela não gostava da merenda, que não era boa. Gostava apenas da sopa de ervilha ou melado com inhame. Mas ela detestava a comida dos outros dias, principalmente quando era achocolatado com três biscoitos. A diretora da escola se chamava Lúcia Carvalho Lopes. Ivone não esquece o nome dela, porque tinha que escrevê-lo todos os dias. Ela era muito brava e todos os alunos tinham medo dela. Quando ela entrava na sala de aula, era obrigatório que todos ficassem em pé, somente quando ela mandava é que os alunos se sentavam novamente. Foi nesse lugar que ela aprendeu a ler.

Ela sempre se posicionou entre as três melhores alunas da sala. “O primeiro lugar era Maria Bernadete. Conheço e vejo ela até hoje. Segundo lugar, geralmente,era Edith Meire.  Ivone e Elair Alves sempre ficavam empatadas no terceiro lugar. “Apesar de toda a diferença econômica e até emocional na época. Eu ficava entre elas”, lembra com orgulho. Naquela época as provas eram mensais e havia premiações para os primeiros lugares.“Certa vez houve uma solenidade no auditório e eu fui premiada com um livrinho que contava a história de uma pata e seus três patinhos, amei o livro”,recorda.

Também não esquece o modo como seu pai sempre defendia os filhos. Certa vez na hora do recreio um aluno lhe deu um tapa no rosto. Ela ficou muito triste e chorou muito. Quando chegou em casa, ela contou para o seu pai, que ficou enfurecido.Foi na Escola e não conseguiu resolver, então ele foi na casa do aluno, mas nãodeixou a situação sem uma solução.

PROFESSORAS PRIMÁRIAS – Suas professoras primárias também não saem de sua memória. Na primeira série era Gisélia Issa. Na segunda série, Letícia Carvalho Lopes; na terceira série, Maria Helena Laceada e na quarta série, Áurea Ângela. “Eu não cheguei a repetir de ano, eu era boa aluna e até hoje eu gosto de escola, gosto da educação”, diz.  Ela lembra de todas as professoras com muito carinho, mas destaca que na terceira série, Maria Helena Lacerda, que montou,em sala de aula, uma biblioteca com tijolo e madeiras.  E colocou livros muito coloridos. Houve uma solenidade e o patrono da sala foi o prefeito da época, César Julião de Sales.

Outro momento que ela recorda com carinho foi a formatura da quarta série. Ela ganhou um tecido do padrinho e dona Miluca, que era sua vizinha, costurou o vestido,que era cor-de-rosa, tinha uma fivela e cintura baixa. Era dezembro e nessa época chovia muito. Mesmo assim a formatura foi linda e emocionante, Assim que saiu da quarta série foi estudar na Fazenda Modelo, uma escola que tinha admissão. Ivone ia a pé, mas ficava lá em tempo integral. Na parte da manhã,aula normal, e à tarde tinha aula de arte e artesanato. Lá aprendeu crochê,tricô e outros artesanatos.  A merenda era sopa de fubá, com legumes, era uma sopa muito deliciosa. Lembra pouco dos meninos, porque era proibido ter amizade com eles.

Em seguida, ele foi para o Colégio Estadual Imaculada Conceição, onde fez o ginasial. Para entrar nessa escola, ela precisou fazer uma prova de admissão.Ela gostava de todas as matérias, em especial das aulas de inglês, por ser uma novidade.  Contudo, tomou bomba em desenho, porque não tinha régua e não fazia os desenhos corretamente. “Ficou faltando meio ponto para eu passar.Lembro que eu e mãe fomos na porta da casa do professor para pedir clemência.Mas ele não me deu o ponto. Perdi uma série por causa de aula de desenho e com nota boa em outras matérias”, disse.

PIADAS RACISTAS – Ivone não se esquece também de um fato triste que aconteceu na quarta série do ginasial, que corresponde ao nono ano do Ensino Fundamental hoje. Havia um professor chamado Padre Cleto, era um homem muito branco, com dois metros de altura, mas era mal e racista ao extremo. Ele sempre fazia piadas racistas e, todo mundo ria e olhava para ela.  Desde o primeiro dia de aula, ele a obrigava a sentar na primeira fila, bem direto ao quadro, ela não tinha o livro de história. Para acompanhar as aulas, ela pegava o livro emprestado com sua amiga Vânia Assis Nunes. Mas ela só podia emprestá-lo no intervalo quando a aula dela terminava e a de Ivone iria começar. “Quando ele saia da sala dela, ela vinha até o meio do caminho e me entregava o livro e eu sentava antes do professor”. Ela lia tanto o livro que,praticamente, o decorou para tirar notas boas e não se indispor com aquele discente porque as piadas racistas eram demais.

“Teve uma vez que ele contou uma piada e os alunos riam e apontavam para mim, então saí de sala de aula e fui a diretoria chorando, contei ao diretora, que minimizou ofato dizendo que o professor ria até de si próprio falando que a careca dele era um aeroporto de mosquitos”. Neste dia, ela não aguentou, aproveitou a distração do porteiro e fugiu. Chegou chorando em casa e contou o que tinha acontecido. Assim que seu pai escutou, disse: “Hoje eu acabo com ele”. E foram correndo atrás do professor, o pai foi de carroça, a mãe correndo atrás tentando evitar o desentendimento e Ivone ia por último, chorando.  Quando chegaram na porta do colégio, ele já tinha ido embora. Então o pai foi pra Casa Paroquial, bem no centro da cidade e pediu várias vezes que ele saísse, pois iria arrancar o pescoço dele. Padre Cleto não abriu a porta. A partir de então,nunca mais fez piadas racistas.

Também teve uma vez que ela foi colocada para fora da sala de aula, porque não tinha o livro de história. Chegou em casa e contou pra sua mãe, que disse imediatamente“De jeito nenhum. Nem põe a pasta aí. Vai voltar agora, lá é seu lugar, com livro ou sem ele”. Chegou na Escola e disse ao diretor: “Minha filha não tem o livro e não vai ficar sem estudar por isso”.  Sem outra alternativa, o diretor deixou que ela voltasse para a sala de aula. “Passados alguns dias, ela ganhou o livro de presente.

TRABALHO-  Ivone começou a trabalhar cedo. Desde nova fazia pequenos serviços domésticos na vizinhança. Aos 13 anos, foi trabalhar num asilo, saia da escola e ia direto para o trabalho. “Foi lá que vi pela primeira vez alguém morrer.Foi Dona Isabela, uma negra, benzedeira, muito alta com os olhos enormes, um sorriso largo e coração enorme. Isso me marcou muito”, detalha. Trabalhou também em uma casa de uma dama da alta sociedade de Pedro Leopoldo que não lhe chamava pelo nome, falava apenas de Sá Chica, mas que ela não contava em casa, pois seu pai não aceitava o trabalho dela em casas de família pois ele tinha medo que o patrão não lhe nos respeitasse. A alta dama da sociedade lhe trancava no banheiro toda vez que ia lavá-lo, pois tinha receio que ela roubasse objetos da casa. Começou a trabalhar na fábrica de tecidos, Cachoeira Grande, antes dos 17 anos, depois trabalhou em diversos outros lugares.

Ivone fez o Ensino Médio Normal na Escola Estadual Imaculada Conceição e se formou em 1978, juntamente com sua irmã mais nova. Ela se lembra com muito orgulho do dia da formatura. “Foi no cine. Minha mãe estava tão orgulhosa de nós, e foi de cabeça erguida, levando duas filhas pra formar, duas normalistas, duas filhas professoras. Minha mãe foi altiva, que aquilo era uma fortaleza, nos levando apé. E foi lindo, lindo”, conta. Em seguida se formou em Letras na Faculdade de Pedro Leopoldo e como já estava efetivada quando se formou, foi dar aulas na Escola José Pedro Filho para as últimas séries do Ensino Fundamental e em outro horário era vice-diretora. “Sou muito agradecida a diretora Blandina Salles e que todo mundo conhece ela como Bilá. Foi ela que me deu oportunidade de ser vice-diretora, embora eu tivesse passado na prova pra ser, e ter sido classificada para o cargo. Mas antes disso, ela já tinha me chamado pra eu ser vice-diretora, onde fiquei durante oito anos”, agradece.

Ivone conta ainda, que mesmo estando num cargo de liderança enfrentava o racismo dos funcionários que ela liderava. Por várias vezes, ela escutou a frase: “Você se parece com uma serviçal”, contudo a diretora era enfática em dizer “Seu lugar é na vice-diretoria”. Hoje já aposentada, ela gosta de se encontrar com seus ex-alunos, de ser cumprimentada por eles e ouvir deles que sentem saudades, e que gostariam que ela voltasse a daraulas de novo, também lhe apresenta para os filhos deles.

DANÇA AFRO – Estudou Dança Afro com Marlene Silva. Conheceu Marlene no Festival de Verão de Pedro Leopoldo, um evento que aconteceu por vários anos nas férias de janeiro, era muito conhecido e pessoas de muitos outros lugares iam participar.Ivone participou das oficinas de dança e no show final e nunca mais parou de dançar. “Marlene era aquela professora de dança afro que ela olhava dentro dos olhos da gente. Para chamar a atenção, para poder colocar coragem”, conta. Em seguida tentou criar um grupo de dança afro em Pedro Leopoldo,juntamente com amigas e sua mãe.  “Nos reunimos e criamos as nossas fantasias, participamos de vários concursos, e até ganhamos alguns.  Íamos às escolas, nas praças, festivais. Foi um momento lindo”, diz.  Contudo as pessoas não entendiam a grandeza dessa arte e lhe chamavam de feiticeiras.Diante do preconceito das pessoas, elas tiveram medo e resolveram se dedicar apenas às palestras.  

FRANÇA – Ivone esteve numa feira de artesanato na França, juntamente com outros 40 artesãos.Era a única brasileira entre eles. Além de comercializar os seus produtos,participou de diversas oficinas em vários centros culturais na cidade de Rennes. Também proferiu palestras em escolas de lá e falou sobre o Enem e o Prouni, sobre a negritude do Brasil. “Eles ficaram encantados com a nossa cultura, a nossa comida, com o nosso jeito de ser”, afirma. CASAMENTO- Se casou com Dilermando em 1981 e teve duas filhas, Suzana Flávia e que nasceu em 1982 e Maria Luíza nasceu em 1983. Hoje adultas uma mora em Aracaju e outra em BH. Tem também um neto, chamado João Pedro.  “Apesar de não saber o que é desemprego, ao mesmo tempo que agradeço a Deus por ter trabalhado,também me arrependo de não ter ficado em casa com minhas filhas”, finaliza. Atualmente ela atua na Pastoral Carcerária de Pedro Leopoldo e viu o que são as revistas vexatórias que as mães passam para visitar os filhos encarcerados. Atualmente luta para que a cidade tenha um scanner corporal,para substituir a tradicional revista íntima, tida como vexatória e constrangedora, para que as mães, avós, tias, filhas e filhos tenham dignidade ao visitar os seus parentes.