O título acima define muito bem o trabalho que Suely Virginia dos Santos realiza com mulheres negras. Em Belo Horizonte, capital mineira, ela atende pessoas que têm problemas de falta de autoconhecimento, baixa estima, ansiedade e/ou que não conseguem dar passos para realizar seus sonhos. Para isso, utiliza uma metodologia Ubuntu de Autocuidado, em seus atendimentos individuais e nas formações. Esta metodologia foi criada com base na Filosofia africana Ubuntu, que tem como princípios filosóficos predominantes na visão de mundo dos povos Bantu. E como estes foram os mais escravizados no Brasil, essa filosofia encontra-se registrada nas memórias da maioria absoluta da população negra brasileira, sendo pautada nos sentimentos.
Na prática, ela trabalha como consultora em relações étnico-raciais, com ênfase na subjetividade negra e feminina. A maioria das mulheres com as quais ela trabalha, está em situação de vulnerabilidade socioeconômica, ou mesmo que que já sofreram e/ou sofrem algum tipo de violência. Contudo a metodologia que ela usa é muito ampla e diversa, lhe dá condição de trabalhar com grupos distintos. Já levou essa metodologia Ubuntu de autocuidado para um grupo de egressos dos homens e mulheres trans.
Seu trabalho contribui para que essas pessoas consigam se compreender e se cuidar, a partir do autoconhecimento. “Para aprender a se cuidar, a gente precisa se conhecer, pois, ninguém cuida do que não conhece, né?” indaga Suely que também atua no sentido de mostrar para essas mulheres que elas devem se movimentar para realizar os seus sonhos, em prol da garantia da sua saúde.
A profissional possui uma rotina intensa. Por exemplo, no dia da entrevista para fazer essa matéria, ela acordou às 5h e realizou atendimentos de 7h até às 20h. Além disso, fica sempre à disposição das suas clientes. Ela ama o que faz, não entende o trabalho como emprego e sim como missão, por isso possui uma tabela de valores sociais, justamente para atender as mulheres que estão subempregadas. “É uma alegria muito grande para mim saber que elas estão conseguindo se movimentar para realizar os seus sonhos e obtendo bom êxito”, completa.
Origem
Nasceu no dia 25 de junho de 1961, na Vila dos Atrevidos, favelalocalizada entre os bairros Cachoeirinha e Santa Cruz, em Belo Horizonte. Caçula de três irmãos, Suely Virginia dos Santos é filha de Antônio Firmino dos Santos, que estudou apenas até o segundo ano primário e de Maria de Lourdes dos Santos que estudou somente até a quarta série primária
Aprendeu a ler sozinha aos cinco anos e por isso se considera autodidata na escrita. Sua mãe nunca soube explicar quando e como Suely aprendeu a ler e escrever. A descoberta desse feito ocorreu, quando a diretora de uma escola que existia no bairro foi à sua casa levar a sobra do leite em pó fornecido pelo Governo estadual para a merenda dos estudantes. Ela me viu sentada no chão da sala com as pernas cruzadas lendo pedaços de uma revista em quadrinhos do Tio Patinhas.
A revistinha que Suely lia vinha da oficina mecânica onde seu pai trabalhava. O filho do patrão dele doava as revistas do Tio Patinhas, Pato Donald, Pateta e muitas outras, para o pai dela levar para casa. Quando criança, Suely também lia insistentemente um calendário, que na época era chamado de folhinha, que ficava pendurado na parede da cozinha de sua casa. A mãe de Suely nunca conseguiu explicar onde e como a menina aprendeu a ler. O fato sempre foi um mistério. Logo em seguida, a descoberta, a diretora Dona Zilda providenciou para que Sueli entrasse para a Escola, com apenas cinco anos.
Quando chegou à instituição de ensino, seus coleguinhas de turma ainda estavam aprendendo a pegar no lápis e desenhar as letras que a professora desenhava no quadro. Mas ela já sabia fazer todas aquelas coisas, por isso ficou sem entusiasmo e passou a debruçar na carteira e dormir até a hora do recreio, merendava e voltava para a sala e dormia até o final da aula. Mesmo sem participar de nenhuma aula, passou para a próxima série, só que eu não tinha idade para entrar nesta turma e, por isso, teve que repetir o primeiro ano, o que pra ela foi um martírio.
Esse fato marcou tanto sua infância, que ela passou a não interagir com os outros alunos na Escola e isso continuou até o fim do Ensino Fundamental e no Médio. Ela era uma adolescente absolutamente tímida, ao ponto de não gostar nem de responder ao presente quando o professor fazia a chamada.
Mudança e trabalho – Quando ela tinha oito anos, seus pais, juntamente com toda família, se mudaram da favela para um lote que eles haviam comprado no bairro Nova Vista. Foi um tempo difícil, o local não tinha água encanada e nem luz elétrica, as ruas não eram pavimentadas e a família passou por muitas necessidades, principalmente pela falta de água encanada e tratada.
Suely começou a trabalhar numa fábrica com apenas 11 anos, e sua carteira de trabalho foi assinada quando ela tinha 12 anos. Trabalhava o dia todo e estudava como bolsista, à noite, no colégio Frederico Ozanam, que ficava no bairro Boa Vista vizinho ao dela. Em seguida, trabalhou também como recepcionista numa distribuidora de revistas. Mesmo trabalhando de dia e estudando à noite, ela passou a ler ainda mais esta época, sua irmã mais velha terminou a oitava série e foi aprovada no CEFET-MG os livros da biblioteca de lá para ela ler.
Suely lia, em média, três livros por semana. Na juventude já tinha lido todos os clássicos da literatura brasileira da época. Com 16 anos já estava lendo a Divina Comédia. Os livros foram seus melhores amigos, já que não conseguia fazer amizades na escola, nem no trabalho, nem em lugar nenhum. Ela não queria se expor, expor suas ideias pra ninguém, porque era sempre muito xingada, humilhada e ridicularizada. Tanto na adolescência como na juventude, ela não conseguiu ter relações familiares e sociais legais, por isso, se identificava muito com o personagem principal do livro “O grande mentecapto, de Fernando Sabino”.
Concurso Público – Passou no concurso público aos 18 anos e aos 19 anos começou a trabalhar no Ministério da Indústria e Comércio, em um órgão que época era chamado Instituto do Açúcar e do Álcool do Instituto Nacional de Previdência (INPS), órgão que atualmente é o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Na época ficava localizado no Edifício Acaiaca, no centro de Belo Horizonte. Trabalhou neste local até 24 anos
Suely trabalhou no IAA durante 3 anos e 6 meses, e considera este período como um martírio, pois tudo de ruim aconteceu com ela naquele local. Ela era a única preta entre os concursados. Já no segundo dia de trabalho, houve uma reclamação de roubo de uma blusa, todas as outras pessoas foram para casa no horário correto e ela teve que ficar para ser interrogada sobre o sumiço da blusa. Dias depois descobriu que já haviam tido outros furtos antes de sua chegada e o pior, esses furtos continuaram. Mas que por ela ser a única preta recém-admitida, cinicamente, os funcionários antigos tentaram imputar à ela, a culpa daquele tipo de delito, cuja frequência alcançava até as marmitas e lanches que sumiam da geladeira, bem como o dinheiro e documentos que algum funcionário deixava dentro da bolsa pendurada no encosto da sua cadeira ou na gaveta da sua mesa de trabalho.
Suely também foi assediada sexualmente e perseguida pelo então superintendente do IAA. O fato foi tão constrangedor que até aos dias atuais, ela não consegue falar normalmente daquilo que viveu nesse período. Praticamente todo dia vivia um assédio e toda semana tinha que se defender de uma acusação de roubo.
No seu segundo dia quando ia para casa jurou para si mesma que ia sair de lá, mas precisava trabalhar e teria que ficar, até arrumar outro emprego. Estudou e entendeu as leis, descobriu que precisava esperar três anos para pedir transferência para outro Ministério. Então, ela começou uma contagem regressiva pra sair de lá, como se fosse uma prisioneira que ia contando os dias que faltavam para sua libertação. No dia que completou três anos, apresentou o pedido de transferência para o Instituto Nacional da Previdência.
Chegou neste Instituto em outubro de 1985 e se jogou nos movimentos sociais sindical. Até 1983, os servidores públicos federais não tinham direito a se sindicalizarem. Ela, juntamente com outras pessoas, criaram o SINTSPREV. Apesar de ter lutado muito para a criação do Sindicato, descobriu que por ser mulher e ser negra, nos pleitos eleitorais do SINTSPREV, só lhe ofereciam o cargo de diretoria cultural
Entreposto – Mesmo tendo consciência da presença do racismo em todos os espaços, inclusive no SINTSPREV, Suely aprendeu a tirar bom proveito do seu cargo de diretora cultural. Passou a representar o Sindicato nas reuniões e eventos promovidos pelos Movimentos Negro Unificado, das Mulheres, MST, sindicatos bancários e vários outros movimentos e junto a estes diversos, ela participou da criação do Entreposto Cultural, movimento que promoveu diversas atividades na Praça da Estação, em Belo Horizonte. Dentre elas, apresentações com personalidades importantes como Vander Lee, Benedita da Silva, Dirceu Greco, Gregório Baremblit, Augusto Boal e Olodum, que veio pela primeira vez a Minas Gerais. Foi nessa época que ela aprendeu a amar a Praça da Estação.
O Entreposto Cultural conseguiu firmar uma parceria com os sindicatos de BH que financiou um curso do Teatro do Oprimido ministrado pela equipe do seu criador, Augusto Boal, para os servidores de diversas entidades sindicais. Além disso, eram realizadas diversas festas para arrecadar fundos Atividades socioculturais, políticas, artísticas e acadêmicas
Foi nessa temporada que Suely conseguiu se socializar um pouco mais, o que implicou no autoconhecimento e na consequente elevação equilibrada da sua autoestima, ajudando-a em uma significativa redução da timidez, conseguindo se encontrar um pouco. Mas ainda assim, dentro dela, havia vontade louca de encontrar o seu lugar, pois não se sentia pertencente a esse mundo. Foi também nessa época que, durante um evento em que ela representava o Sindicato, que ela conheceu o movimento de mulheres negras e teve a oportunidade de ir a Salvador como participante do II Encontro Nacional de Mulheres Negras, em 1993. E esta experiência foi um divisor de águas na sua vida. Em 1993, pediu exoneração da diretoria do sindicato.
Em 1996, quando já era graduada em Serviço Social, tinha formação complementar em Terapia Floral, além dos cursos de Yoga, Leitura Corporal, Quelação (cura através da imposição das mãos) e outros. Mas, ela ainda trabalhava no INSS no cargo de Agente Administrativo. Já não se sentia tão bem naquele lugar. Mas não podia sair porque seu pai dependia do plano de saúde. A solução surgiu qando o então Presidente Fernando Henrique Cardoso lançou o primeiro plano de incentivo à demissão voluntária implantado no Serviço Público Federal. Por meio desse plano, Suely pode demitir-se sem perder o plano de saúde, e com uma pequena indenização. Deixou o serviço público em dezembro de 1996.
Nunca se arrependeu por ter pedido demissão do Serviço Público Federal, mesmo sabendo que se tivesse continuado, atualmente estaria numa situação financeira melhor. Mas, além de lhe concederem uma preciosa autonomia, as experiências vividas desde a sua saída da situação de servidora pública, ou seja, de “empregada do Governo” contribuíram e seguem contribuindo para a contínua ampliação do seu conhecimento e beneficiando o seu processo de humanização.
Pastoral da Mulher – A partir da sua saída do INSS, além de trabalhar como terapeuta floral fazendo atendimentos individuais, Suely elaborou um projeto de intervenção terapêutica social para mulheres. E o presentou à coordenação da Pastoral da Mulher Marginalizada da Igreja Católica (Arquidiocese de BH), como uma proposta de trabalho voluntário, no formato de oficinas semanais, para tratar dos sentimentos das mulheres envolvidas com a prostituição que são assistidas por essa entidade.
Antes de aplicar as técnicas nas mulheres, Suely aplicava em si mesma, avaliando os seus efeitos e potenciais. Durante os meses em que trabalho na pastoral, as oficinas ficavam cheias, além das cadeiras, as mulheres sentavam no chão, debaixo da mesa, no sofá, ocupando todas as almofadas e outras ainda ficavam em pé.
O lema da pastoral nunca foi retirar as mulheres da prostituição. O trabalho consistia em contribuir para que essas mulheres se sentissem agentes da sua própria libertação, porém, a partir das oficinas sobre os sentimentos realizadas por Suely, um grupo de mulheres procurou a coordenação da Pastoral e pediu ajuda para fazer um curso de produção de cosméticos e foi ajudado. Essas mulheres aprenderam a produzir cosméticos e formaram uma cooperativa para vendê-los, afastando-se gradativamente da prostituição. Mas, além dos produtos da cooperativa, cada cooperada também vendia cosméticos de revistas. Uma participante das oficinas sobre os sentimentos realizadas por Suely obteve a ajuda da Pastoral para o custeio de um curso de cuidadora de idosos. Mas, depois de formada, ela optou por assumir o cuidado dos seus cinco filhos, juntamente com os filhos de outras mulheres que ainda se encontravam na prostituição.
Desafios – Acho que esta frase tenha esse formato: “Devido à boa aceitação das oficinas sobre os sentimentos, Suely foi contratada pela Pastoral para escrever a história da instituição, bem como para elaborar e implantar o seu Plano Social de trabalho. A boa receptividade das mulheres assistidas pela Pastoral em relação às oficinas sobre os sentimentos também despertaram o interesse de religiosos/as responsáveis pela coordenação de algumas das congregações atuantes na instituição, sobre a fundamentação teórica e a metodologia do trabalho realizado por Suely. E estes/às chegaram estratégias que beiravam ao assédio moral e do extrativismo intelectual, visando compreender os sentidos (valores subjetivos) daquele trabalho, que envolviam tão espontaneamente as mulheres participantes.
O maior desafio ocorreu, porque antes da chegada de Suely na Pastoral, uma psicóloga havia se disponibilizado para o trabalho voluntário com as mulheres, mas, elas não a procuraram. Assim, ao tomar conhecimento da boa aceitação das mulheres às oficinas sobre os sentimentos, essa profissional da Psicologia ficou indignada. Em uma ligação telefônica, ela chamou a Suely de charlatã, argumentando que somente a sua graduação em Serviço Social não a habilitada para a abordagem dos sentimentos, que a Terapia Floral não tinha nenhum valor profissional ou científico. E concluiu ameaçando destruir a vida dela.
A violência verbal e a ameaça feita por essa psicóloga foram assustadoras para Suely. Mas, ao contrário de desistir do trabalho com os sentimentos, ela decidiu se movimentar para legitimá-lo na ciência, fazendo o curso de mestrado. E se pôs a estudar sozinha, visando à sua inserção no campo de produção de conhecimento.
MESTRADO – Em 2012, após 8 anos de tentativas de inserção no curso de mestrado na Sociologia e na Psicologia frustradas, Suely ingressou na primeira turma da formação pré-acadêmica para pessoas negras, quilombolas e indígenas denominada de “Afirmação na Pós”. É realizada pelo Programa Ações Afirmativas na UFMG em parceria com a Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG e o CEFET/MG.
A formação pré-acadêmica contribuiu imensamente para a aprovação de Suely no mestrado em Psicologia Social, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG em 2013. E ela iniciou o curso em fevereiro de 2014.
Mas, devido à experiência adquirida no trabalho com os sentimentos, a ameaça sofrida no período da realização das oficinas na Pastoral e, particularmente, no Afirmação na Pós”, Suely iniciou o curso de mestrado ciente de que deveria “guardar “conhecimento que orientava o seu trabalho com os sentimentos e a sua influência nas condutas. E priorizar os estudos teóricos sobre o processo de formação e as características da subjetividade das populações negra e quilombola no Brasil.
No entanto, desde o início do curso de mestrado, Suely percebeu que, por algum motivo, os seus/suas professores/as não se afinavam com a Teoria da Subjetividade de González Rey, dando prioridade ao tema da identidade. Por isto, ela não teve nenhuma aula sobre o conceito e precisou estudá-lo sozinha, vivendo algo semelhante ao seu solitário e precoce processo de alfabetização. Só que os professores e as professoras da Psicologia, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, de 2014 até 2016, não se afinavam com o tema da subjetividade. Suely terminou o mestrado em 2016, formando um currículo semelhante a uma colcha de retalhos, pois, ela é graduada em Serviço Social, tem formação complementar em Terapia Floral e mestrado em Psicologia social, com ênfase na subjetividade.
Ela não pode trabalhar como psicóloga clínica, ou seja, fazer acompanhamento psicológico. É que, além do Conselho da categoria de psicólogos não autorizar, ela também não tem interesse, pois, o trabalho com a subjetividade conciliada aos temas raciais, de gênero e classe implicam estudos e procedimentos profissionais orientados pela transdisciplinaridade. Terminou o curso de Mestrado entendendo que não tinha mais que ficar dentro da academia. Ela queria mesmo era voltar a trabalhar com o povo, com as pessoas.